Cão no Couro

Exposição Individual na Casa Azul, Torres Vedras

Com a curadoria de Mafalda Duarte Barrela

Cão no couro

  1. Expressão do nordeste do Brasil.

  2. “Endiabrado, irado, possesso, capaz de fazer tudo, de cometer qualquer desatino; fora de si” (Mário Souto Maior, Território da danação: o diabo na cultura popular do nordeste, 1975)

O limite do humano é a sua pele. A membrana epidérmica rodeia a sua existência material, a concretização biológica do que é. Se, por um lado, vemos a pele como algo constante, um dado adquirido, algo que nos pertence e que nos compõe ceteris paribus, por outro, ela é mutável. Observamos a sua elasticidade em flutuações de peso, gravidezes, cicatrizes que mancham e deformam (ou reformam). Com a idade, recordamos memórias nos vales das nossas rugas. Qualquer embate se faz sentir.

Num nível microscópico, da ordem dos átomos e que tais, sabemos que a matéria que nos constitui hoje não é a que nos constitui amanhã. A pele que vestimos possui uma arquitetura celular em constante mudança, por via das propriedades da física e da química. Poderemos questionar-nos se a nossa pele será, de facto, nossa, ou se pertencerá ao mundo. A forma como esta membrana que nos delimita se altera na sua essência é fugaz e caótica e, ao mesmo tempo, suave e impercetível. Assim, como pode esta materialidade tão difusa ditar tanto sobre a perceção que outros têm sobre nós e, consequentemente, afetar o modo como navegamos o mundo?

A exposição Cão no Couro de Bárbara Rosário parte de um sentimento de inquietação, frustração e raiva com questões que assomam o país, como racismo estrutural, misoginia, desigualdade de classe e suas interseções. Da perspetiva individual a uma reflexão sobre o coletivo, as obras da artista surgem quase como um ensaio sobre o conceito de alteridade. O que é a alteridade? Como é criada? De que forma se manifesta no quotidiano individual e coletivo? De que forma acontecimentos históricos moldam o enquadramento que temos do “outro”? Conseguiremos conceber as nossas vivências enquanto sujeitos como mais do que dialéticas, e romper com as dicotomias impostas pela performatividade rotineira e iterativa do que é suposto ser?

“Acordar para os privilégios que certos grupos sociais têm e praticar pequenos exercícios de percepção pode transformar situações de violência que antes do processo de conscientização não seriam questionadas.”

Djamila Ribeiro, Pequeno Manual Antirracista, 2019

Texto curatorial de Mafalda Duarte Barrela